terça-feira, 16 de novembro de 2010

O neologismo "juridiquês"

Em homenagem ao meu grande amigo Anderson Serra segue texto:


No estudo do Direito, a linguagem vem ganhando cada vez mais destaque, o que não é de se estranhar, tendo em vista sua importância fundamental no processo cognoscível jurídico. É através da linguagem, escrita ou falada, que as decisões dos tribunais se tornam conhecidas, que é revelada a jurisprudência, que os doutrinadores se expressam, que os advogados, promotores, defensores e etc. exercem suas atividades laborais. De forma mais importante ainda: é pela linguagem que são conhecidas as normas jurídicas.
A linguagem é um dos principais recursos de que dispõem as ciências. É através dela que o cientista se expressa, passa adiante seus conhecimentos, bem como absorve outros, proporcionando o desenvolvimento histórico do saber humano.
Em seu trabalho, o cientista faz uso tanto de palavras normalmente usadas no cotidiano como de linguagem técnica, específica da ciência com a qual trabalha. O uso de termos e expressões específicas se dá por que muitas vezes a linguagem do cotidiano, que podemos chamar de geral, dá margem a interpretações ambíguas, vagas, imprecisas, o que acontece naturalmente devido à flexibilidade que uma palavra ou expressão pode ter no uso diário, dependendo do contexto em que é usada. Já as palavras e expressões ditas técnicas são mais precisas, tendo significado mais específico dentro de um ramo também específico da ciência. Dizer que as palavras técnicas, próprias ou específicas de determinada ciência tem significado mais específico não significa dizer que o uso destas não sujeite o texto a imprecisões ou incertezas, mas sim que seu uso diminui a imprecisão, proporcionando mais objetividade aos textos científicos.
Perceba-se que os ramos da ciência, ao fazer uso adequado da linguagem, buscam manter comunicação precisa, clara, objetiva, dentro do corpo científico, de forma que os termos específicos da ciência existem (ou deveriam existir) também e principalmente para alcançar esta finalidade.
Freqüentemente, vem o direito brasileiro sendo alvo de críticas devido ao uso de seu vernáculo específico. Alega-se que a linguagem jurídica, freqüentemente truncada e obscura, muitas vezes deixa de exercer sua função principal de comunicação, mesmo entre os cientistas e operadores do Direito, gerando, entre outros problemas, a morosidade no trâmite dos processos. Alegam também que o uso da linguagem atualmente existente no meio jurídico promove um caráter antidemocrático ao Direito, pois a maioria da população não tem como ter acesso independente ao mundo jurídico por não entender o seu linguajar, de forma que o seu acesso à Justiça termina sendo prejudicado.
Há até termo específico para se referir ao fenômeno. Trata-se do neologismo “juridiquês”.
É certo que todos os ramos científicos têm seus termos e expressões técnicos, fica claro também a importância destes termos e expressões para o entendimento e desenvolvimento do campo científico. Por que estaria então o Direito sendo alvo de tantas críticas?
Há basicamente dois pontos capitais que merecem destaque. O primeiro ponto a ser observado é que a linguagem jurídica atualmente usada no Brasil, além de possuir termos técnicos, possui também termos rebuscados, arcaicos, que além de não acrescentar conteúdo ao texto, propiciam a sua não compreensão até mesmo entre os profissionais do Direito. Nesse sentido afirma Hélide Santos Campos, professora da Unip de Sorocaba “termos técnicos têm que ser mantidos, pois têm significado próprio. Já os arcaísmos podem ser substituídos”.
O segundo ponto de destaque é que as normas jurídicas são feitas para serem cumpridas por todo o corpo social, seu uso e observação não se verifica apenas entre os profissionais do Direito. Nesse sentido, não tem lógica que as leis, resoluções, sentenças etc. sejam escritas em linguagem inacessível aos leigos.
Como resolver os problemas relacionados a essas dificuldades, principalmente no que se refere à última, tendo em vista que a população em geral não tem acesso aos termos técnicos jurídicos, nem estes podem deixar de ser usados, devido à importante função que exercem dentro da ciência jurídica?
Inicialmente, há de se aprender a diferenciar a “linguagem da Ciência Dogmática do Direito”, com termos técnicos específicos, imprescindíveis a uma comunicação exata entre cientistas jurídicos, e a “linguagem do Direito”, onde deve se buscar a maior acessibilidade possível, procurando, dentro do possível, diminuir o uso de termos específicos da ciência jurídica e eliminando arcaísmos e construções gramaticais labirínticas que prejudicam a comunicação.
Há de se ter sempre em mente que o uso da linguagem tem a finalidade de comunicação. Esse é o intento dos termos técnicos dos diversos ramos científicos, não o contrário como podem alguns pensar. Assim, os termos técnicos próprios da Ciência Jurídica devem sim ser usados dentro de trabalhos acadêmicos, em obras Doutrinárias e outros documentos predominantemente técnicos, da mesma forma que devem continuar a ser usados expressões específicas em trabalhos científicos ou técnicos de engenharia, medicina, matemática, geologia e etc.
Por sua vez, devem os textos direcionados à população como um todo ser adequados de modo a ter característica eminentemente pública e democrática. São exemplos deste tipo de textos as leis, as decisões judiciais, as certidões e declarações fornecidas por órgãos do poder judiciário, os comunicados destes órgãos, etc.
Por fim, os arcaísmos, rebuscamentos, construções sintáticas labirínticas que não acrescentam sentido, usos de palavras e expressões aparatosas que não fazem outra coisa além de mostrar (há controvérsias) vasto vocabulário, devem todos estes ser evitados devido à sua falta de funcionalidade e mesmo pela sua capacidade de embaraçar o entendimento dos textos, este último entendimento se aplicando tanto à “linguagem da Ciência Dogmática do Direito” quanto à “linguagem do Direito”.
Acompanhemos exemplo típico de Juridiquês com tradução da professora Hélide Santos Campos:
V. Ex.ª, data máxima vênia, não adentrou às entranhas meritórias doutrinárias e jurisprudenciais acopladas na inicial, que caracterizam, hialinamente, o dano sofrido.
Tradução: V. Ex.ª não observou devidamente a doutrina e a jurisprudência citada na inicial, que caracterizam, claramente, o dano sofrido.
Percebe-se que a linguagem do texto não traduzido, com uso de termos pomposos e sofisticados, não tem a finalidade de proporcionar comunicação mais exata, apenas torna a linguagem mais rebuscada. Isso fica evidente após lermos a tradução, quando percebemos que com uso de linguagem bem mais acessível, podemos manter comunicação mais eficaz sem ter prejuízo algum em relação ao conteúdo do texto.
Observemos este outro exemplo do advogado Sabatini Giampietro Netto:
Com espia no referido precedente, plenamente afincado, de modo consuetudinário, por entendimento turmário iterativo e remansoso, e com amplo supedâneo na Carta Política, que não preceitua garantia ao contencioso nem absoluta nem ilimitada, padecendo ao revés dos temperamentos constritores limados pela dicção do legislador infraconstitucional, resulta de meridiana clareza, tornando despicienda maior peroração, que o apelo a este Pretório se compadece do imperioso prequestionamento da matéria abojada na insurgência, tal entendido como expressamente abordada no Acórdão guerreado, sem o que estéril se mostrará a irresignação, inviabilizada ab ovo por carecer de pressuposto essencial ao desabrochar da operação cognitiva.
Tradução: Um recurso, para ser recebido pelos tribunais superiores, deve abordar matéria explicitamente tocada pelo tribunal inferior ao julgar a causa. Isso não ocorrendo, será pura e simplesmente rejeitado, sem exame do mérito da questão.
Neste exemplo fica exposto que, além de a linguagem inicial em nada acrescentar em conteúdo e prejudicar a comunicação, ainda proporciona um aumento significativo do tamanho do texto, o que em um processo com tantas outras peças, como petições iniciais, contestações, despachos e etc., torna o processo muito maior do que deveria, acarretando demora no tempo de tramitação dos autos.
Observemos agora mais dois textos extraídos de processos cíveis (alguns dados foram removidos para preservação da intimidade das partes):


Ação de Divorcio Litigioso Direto nº
Requerente: XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX
Requerida: Paula XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX.

S E N T E N Ç A


Vistos, etc.
           XXXXXXXXXXXXXXXXXXX, através de advogado legalmente habilitado, ajuizou a presente ação de Divorcio Litigioso em face de XXXXXXXXXXXXXXXXXXX, aduzindo, em síntese, que é casado com a requerida desde 06/12/2000; que dessa união não nasceram filhos; que o casal não possui bens a partilhar e encontra-se separado de fato desde o ano de 2005, portanto, há mais de dois anos. Requereu a intervenção do Ministério Público a citação da requerida e a procedência do pedido. Juntou os documentos de fls. 04/07.  Regularmente citada pela via editalícia, deixou escoar “in albis” o prazo contestatório, sendo decretada sua revelia e nomeado curador, em audiência de Instrução realizada às fls. 22. Foram ouvidas três testemunhas, que confirmaram o fato narrado na peça exordial. Com vistas ao M. Público,este ofereceu parecer favorável à decretação do divórcio do casal, ante a observância dos preceitos legais atinentes à espécie.
É o relatório. Decido.
Considerando satisfeitas as exigências legais, DECRETO A EXTINÇÃO DA SOCIEDADE CONJUGAL, com fulcro no art. 1.571, inciso IV, c/c o art. 1.580, § 2º, ambos do NCC, extinguindo a sociedade conjugal de XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX e XXXXXXXXXXXXXXXXXXXX, voltando a cônjuge varoa a usar o seu nome de solteira, ou seja: XXXXXXXXXXXXXXXXX. Após o trânsito em julgado, expeça-se o mandado de averbação ao cartório competente. Publique-se. Registre-se. Arquive-se.
XXXXXXXXXXXXXXXX, 22 de dezembro de 2009.


XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX
Juiz de Direito

Na presente sentença encontramos uma linguagem objetiva e exata, não dificultando o entendimento do texto. Destacamos, porém, algumas palavras que poderiam ter sido substituídas por outras, de forma a tornar o texto ainda mais claro, assim: a expressão “via editalícia” poderia ser substituída pela expressão “por edital”, que é bem mais conhecida, mais curta e não prejudica a significação do texto; já “in albis” é expressão latina que significa “em branco”, ou seja, sem nenhuma providência, no contexto acima “sem manifestação”; peça exordial é o mesmo que peça ou petição inicial, sendo esta última mais conhecida; com fulcro tem o mesmo significado de “com base”, “com fundamento”, neste último caso não entendo como expressão técnica, trata-se apenas de palavra menos conhecida no linguajar cotidiano, podendo qualquer outro termo habitual como “fundamentado” exercer a mesma função sem qualquer prejuízo. Vamos ao segundo exemplo:

SENTENÇA


Vistos, etc...
           Cuida-se de ação de Alvará Judicial ajuizada pelo Sr. XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX com o fito de ver liberada a quantia existente na conta bancária nº 0000000000 tipo 00 no Banco Bradesco S/A existente em nome do autor.
            Em despacho de folhas 07/13 foi determinado a requisição de informações ao banco indicado na exordial; em resposta a este juízo a instituição bancária declarou a inexistência de numerários na conta indicada.
            É o Relatório. Decido.
            Reza o art.269, inc. I do CPC que o juiz rejeitará o pedido do autor com a resolução de mérito, no caso vertente encontra-se óbice legal para deferir o pleito da parte autora ante a inexistência noticiada pelo banco, não restando outra alternativa ao magistrado se não a rejeição do pedido exordial.
           Ante ao exposto extingo o processo com a resolução do mérito nos moldes do art.269 inc.I do CPC.
           Custas ex leges, já satisfeitas pelo autor.
           P.R.I
Arcoverde/PE, 29 de Abril de 2010.

Podemos fazer as mesmas observações feitas ao exemplo anterior no que se refere à expressão “exordial”. Ex leges, por sua vez, significa “da lei” ou “previsto (a)” em lei” e poderia ter sido substituída por uma destas duas últimas fórmulas.
Vale observar que as dificuldades no entendimento do conteúdo dos textos jurídicos por não profissionais da área se dá não apenas pelo uso de termos técnicos ou do juridiquês. O nível de escolaridade também influência a intelecção, de forma que um dos caminhos que devem ser buscados, a fim de que o conteúdo dos textos seja mais facilmente assimilado, é o aumento da escolarização da população em geral. Pessoas mais instruídas tendem a encontrar menos dificuldades em suas leituras, mesmo quando estão lendo conteúdo informativo de caráter científico e nesse texto se encontram termos e expressões de natureza técnica.


Raul Teixeira Cavalcanti - paideiense
 


LÍNGUA Portuguesa (www.revistalingua.com.br); Ano 1, número 2, 2005. Artigo: JURIDIQUÊS no Banco dos Réus. Acessado em 05 de novembro de 2010.

RIZZATTO NUNES, Luiz Antônio. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2000